Começo este artigo perguntando aos colegas: Alguém já fez uma medição de resistividades do solo e encontrou uma curva de resistividades aparentes reta e horizontal? Eu não me lembro de ter visto esta anomalia.
Os solos uniformes não existem na natureza; o solo homogêneo é uma abstração matemática que foi útil há 50 anos, quando não existiam computadores, apenas calculadoras de mão. Hoje em dia esta simplificação da natureza não é mais necessária, pois todo mundo tem um computador em casa ou no trabalho.
É sempre possível achar um modelo de solo uniforme capaz de reproduzir a resistência de uma malha em solo multicamadas, porém, é impossível achar um modelo de solo uniforme capaz não somente de reproduzir a resistência de aterramento da malha, mas também os gradientes de potenciais na superfície do solo produzidos por um solo multicamadas e, portanto, calcular de forma adequada as tensões de passo e de toque.
Se quisermos atender às normas ABNT em vigor há que se recordar que a ABNT NBR 7117/2020 estabelece que o modelo básico de solo tem três camadas. Formulações, como a do Anexo A, que se propõem a reduzir um modelo de solo multicamadas a um modelo uniforme, são formulações que descaracterizam a estrutura geoelétrica de subsuperfície para ajustar o subsolo às limitações do projetista. Daí para frente o projeto de aterramento passa a ser uma obra de ficção.
O uso de um modelo de solo de resistividade uniforme aparece na ABNT NBR 15751 em três itens:
- no Item 5.1 – que apresenta uma formulação para o cálculo preliminar da resistência do aterramento;
- no Anexo A (informativo) – que “ensina” a reduzir um modelo de solo de dupla camada para uniforme;
- no Anexo B (informativo) – que tem o título “Metodologia para cálculo simplificado de potenciais no solo”.
O Anexo B apresenta as expressões que constam do Anexo D da IEEE-80/2013, com o título “Simplified step and mesh equations”. Esta metodologia, segundo o próprio IEEE-80, é restrita a malhas retangulares com relação comprimento/largura máxima de 2,5/1, que atendam às seguintes premissas:
“Uma tensão de malha (em volts) na superfície do solo no centro de uma retícula de canto (assumindo uma malha retangular igualmente espaçada, enterrada à profundidade h em um solo de resistividade uniforme). Esta malha pode consistir em n condutores paralelos com espaçamento D e com um número indeterminado de conexões cruzadas. Todos os condutores da malha são considerados como tendo o diâmetro d.”
Na revisão ora em curso, a ideia é concentrar o conteúdo destes três itens no Anexo B, que deve ser preservado, porém, com alguns ajustes e com as devidas ressalvas das limitações da sua aplicação.
Assim como não existe o solo uniforme, tampouco existem malhas de aterramento tão bem comportadas, exceto as bem pequenas, tipo cabine de medição, com área inferior a 1.000 m². Um argumento que se ouve é que a metodologia simplificada se aplica a subestações industriais e cabines de medição, que são pequenas.
É verdade que elas são pequenas. Ocorre que, na grande maioria, estas subestações fazem parte de complexos mais amplos (plantas industriais, datacenters, UFV e outros). Normalmente saem destas subestações circuitos em média e em baixa tensão que atendem a unidades distribuídas por uma área muito superior à da subestação. Os condutores de aterramento que acompanham estes circuitos são aterrados quando chegam nas unidades por eles alimentadas. Isto significa que a quase totalidade destas pequenas subestações, na verdade, integra um sistema de aterramento muito mais amplo.
Dessa maneira, as tensões de passo e de toque com origem em faltas para a terra nestas subestações não ficam restritas ao perímetro da sua pequena malha, frequentemente calculada com modelo de solo uniforme, mas se propagam por todo o sistema de aterramento da instalação. Projetos de aterramento de subestações que integram instalações, em geral, erram em se limitar à área ocupada pela subestação e expõem os trabalhadores das unidades por elas alimentadas a risco de tensão de passo e de toque.
Recentemente, recebi um projeto de aterramento de uma UFV com diagonal de 2,2 km, elaborado por este método simplificado, e para completar, com um modelo de solo uniforme de resistividade superior a 12.000 ohms.m. Era um duplo desastre – uma medição de resistividades do solo feita em um solo de alta resistividade com terrômetro e um projeto de aterramento de um empreendimento de milhões de dólares feito na base da engenharia 4 operações, com uma calculadora. Naturalmente, o cliente não aprovou este projeto, que teve que recomeçar do zero – foi contratada uma nova campanha de sondagens elétricas verticais + audiomagnetotelúricas, e eu fiz o reprojeto do sistema de aterramento com um modelo de solo profundo, compatível com a dimensão da UFV.
O que é importante que o setor elétrico entenda é que o tempo dos aterramentos independentes ficou para trás. Hoje está tudo interligado, a realidade é outra, não projetamos mais aterramentos, mas sim sistemas de aterramento. As normas precisam refletir esta realidade, que não é nova, já vem desde o fim do século passado. Na década de 1980 eu já fazia os meus projetos de aterramento com modelos de solo de dupla camada (obtidos com as curvas padrão plotadas em papel log-log) e usando um programa em Fortran “feito em casa”. Em 1994 fiz um curso com o Prof. Dawalib, em Montreal/Canadá, voltei para o Brasil como representante do software por ele desenvolvido (o CDEGS), e desde então tenho me empenhado em colaborar com a modernização do setor de aterramento elétrico, participando de comitês normativos, publicando artigos em revistas e apresentando trabalhos em congressos, e mais recentemente, por meio de postagens no LinkedIn.
Não existe norma à prova de mau uso, porém, os membros da comissão que elabora/revisa as normas, devem se empenhar para reduzir ao máximo este risco. A inclusão dos limites de aplicabilidade para cada um dos métodos apresentados nas normas é de extrema importância neste aspecto.
Autor:
Por Paulo Edmundo Freire da Fonseca é engenheiro eletricista e Mestre em Sistemas de Potência (PUC-RJ). Doutor em Geociências (Unicamp), membro do Cigre e do Cobei e também atua como diretor na Paiol Engenharia.