Perdas não técnicas: o desafio “invisível” da eficiência energética no Brasil

Por: Fernanda Pacheco

Na complexa rede de abastecimento energético que sustenta o Brasil, não faltam desafios a serem superados. Se fosse necessário apontar os três maiores obstáculos que tiram o sono dos profissionais do setor elétrico, com certeza, o difícil combate às perdas não técnicas de energia figurariam na lista da grande maioria dos votantes – possivelmente, de todos eles. Trata-se de algo semelhante a um vazamento silencioso, em que a eletricidade se dissipa ao longo dos cabos que cruzam as ruas, avenidas e estradas do país, deixando um rastro de ineficiência e prejuízos financeiros.

Sua origem é multifacetada, envolvendo problemas de medição inadequada, falhas na infraestrutura elétrica e, sobretudo, os furtos de energia (os tão famosos “gatos de luz”). As consequências desses desvios são altamente prejudiciais, impactando diretamente nos bolsos dos consumidores, no custo operacional das empresas de distribuição e, de forma mais ampla, na capacidade do país de investir em uma infraestrutura energética moderna e sustentável.

De acordo com informações divulgadas na edição de 2023 do relatório “Perdas de Energia Elétrica na Distribuição”, elaborado pela Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), as perdas não técnicas reais no país representaram um custo de aproximadamente R$ 8,69 bilhões em 2022 – número obtido pela multiplicação dos montantes pelo preço médio da energia nos processos tarifários, sem considerar tributos.

Já as chamadas perdas não técnicas regulatórias, que são calculadas conforme a metodologia própria da ANEEL – observando critérios de eficiência e limitando o repasse das perdas não técnicas reais aos consumidores –, resultaram em um custo de aproximadamente R$ 6,59 bilhões, o que representa cerca de 3,1% da receita requerida das distribuidoras, e 9,0% da Parcela B (componente tarifária que engloba custos gerenciáveis, ou seja, aqueles que podem ser administrados pela distribuidora), variando de acordo com a companhia elétrica. 

Light no escuro

Em maio deste ano, pudemos observar um exemplo prático do que realmente significa viver em um cenário de tamanha insegurança. Estimando uma dívida que beira os R$ 11 bilhões, a Light S.A., companhia privada atuante em geração, distribuição, comercialização e soluções de energia elétrica, anunciou o ajuizamento de um pedido de recuperação judicial, deixando o mercado energético em alerta.

O drama se desenrola na região metropolitana do Rio de Janeiro, onde a empresa possui sua única concessão – e uma das áreas do país onde mais se enfrenta batalhas contra as ligações clandestinas de energia. E o que já não era nada simples de se resolver, pode piorar ainda mais, uma vez que tais práticas ilegais não apenas impactaram as finanças do Grupo Light, como também seguem prejudicando sua capacidade de atender às metas de qualidade impostas pela ANEEL.

Com isso, a companhia agora encara a perspectiva real de perder sua concessão, que tem validade até 2026, o que pode representar uma transformação radical no cenário energético da capital fluminense. A empresa já solicitou a renovação antecipada, no entanto, a ANEEL tem até o final de 2024 para emitir sua decisão a respeito do pedido, o que mantém as muitas incertezas ainda pairando no ar.

O gráfico a seguir, disponibilizado no relatório de perdas da agência reguladora, detalha o envolvimento das principais concessionárias de energia nas perdas não técnicas reais vividas pelo país em 2022, e o compara com a participação dessas empresas no mercado de baixa tensão do Brasil. Como boa parte das perdas não técnicas ocorre no mercado de baixa tensão, a ANEEL as homologa sobre esse mercado, que é inferior ao da energia injetada, utilizado como denominador das perdas técnicas (que ocorrem durante o processo de transporte, transformação de tensão e medição, em decorrência das leis da física).

Fonte: relatório “Perdas de Energia Elétrica na Distribuição”, da ANEEL.

Na imagem, é possível observar que a Light se sobressai significativamente em relação às demais concessionárias, revelando-se a mais afetada pelos desvios de energia. Sozinha, a companhia foi responsável por quase 20% do total de perdas não técnicas em território nacional. Tal participação contrasta com sua representatividade relativamente modesta no mercado de baixa tensão brasileiro, onde a empresa respondeu por cerca de 5% de toda a energia produzida no último ano. 

Como as concessionárias atuam em regiões com diferentes características de mercado e variáveis econômicas e sociais, a comparação entre elas considera um ranking de complexidade socioeconômica, elaborado a partir de modelos econométricos, que permite uma comparação mais justa do desempenho das perdas não técnicas das distribuidoras, conforme o porte e a posição.

Desafios

As amplas proporções dessa questão oferecem uma pista clara sobre o grau de dificuldade que tanto as concessionárias de energia quanto o Estado enfrentam na busca por soluções eficazes. A ANEEL enfatiza publicamente a importância intrínseca da redução das perdas não técnicas, sublinhando a necessidade incontornável de que as distribuidoras se empenhem continuamente na minimização dessas perdas, independentemente do quadro regulatório estabelecido, seja para reduzir prejuízos, quando as perdas reais estiverem acima da regulatória, ou adquirir ganhos, quando acontecer o oposto. 

Mas, ao que tudo indica, medidas que poderiam ser fundamentais para a efetividade de ações de combate deparam-se com desafios consideráveis. Nas palavras de Marcos Madureira, presidente da Associação Brasileira de Distribuidores de Energia Elétrica (Abradee), “as empresas estão sempre trabalhando no desenvolvimento de técnicas para identificar as perdas e corrigi-las, mas muitas vezes ficam incapazes de realizar seu trabalho, fazendo com que as perdas fiquem mais elevadas”. 

Madureira enfatiza que os obstáculos começam em decorrência de uma questão que parece ser a raiz de muitos desafios no país: a impunidade. “Infelizmente, muitas vezes você identifica o furto de energia, mas não consegue que aquele consumidor seja penalizado. Em algumas regiões, existe uma cultura na qual as pessoas acham que é normal fazer o desvio de energia elétrica”, lamenta. 

De acordo com o executivo, as distribuidoras de diversas regiões do país enfrentam uma verdadeira encruzilhada quando se trata de combater os desvios de energia. Esta difícil situação, ele ressalta, não está apenas relacionada ao setor elétrico, mas ecoa novamente um problema crônico que há muito aflige o Brasil.

Existem áreas onde as empresas têm uma dificuldade ou a impossibilidade de atuar, como é o que acontece no próprio Rio de Janeiro, uma região onde se tem uma ausência do Estado, que não permite que a distribuidora possa executar sua tarefa. Por conta da criminalidade, não tem como o eletricista entrar em uma dessas regiões para fazer o seu papel, que é identificar e corrigir o desvio.”

O presidente da Abradee, Marcos Madureira, durante a 1ª edição do Congresso de Inovação na Distribuição de Energia Elétrica (CIDE), realizado em junho deste ano – uma parceria entre Abradee e Grupo O Setor Elétrico. Imagem: Reprodução/CIDE.

Levando energia a mais de 15 milhões de clientes através de suas distribuidoras nos estados do Rio de Janeiro, Ceará e São Paulo, a Enel Brasil enfrenta persistentemente os desafios elencados pelo especialista. Segundo Pâmela Botelho, responsável por Recuperação de Energia da empresa, essas barreiras, de fato, parecem ser particularmente mais intensas no caso da Enel Rio, responsável por atender 66 municípios fluminenses.

“A Enel Distribuição Rio está impedida de exercer várias atividades como, por exemplo, o combate ao furto de energia elétrica, para resguardar a segurança de seus colaboradores. Tal situação vem se agravando ao longo dos últimos anos: em 2004, a Enel Rio tinha 74 mil consumidores em áreas de risco e, em 2021, esse número chegou a 470 mil clientes, um crescimento de mais de 600%. Atualmente, mais de 15% do total de consumidores da distribuidora estão localizados nestas áreas em que a companhia possui restrição para atuar”, afirma Pâmela.

Segundo dados da ANEEL, os estados brasileiros que registraram os índices mais elevados de perdas não técnicas reais em 2022 foram o Amazonas, Amapá, Pará e Rio de Janeiro. Em contrapartida, as concessionárias que enfrentaram as menores taxas dessas perdas, a nível nacional, atenderam aos estados do Rio Grande do Norte, Goiás, Paraná e Sergipe.

Níveis das perdas não técnicas reais (à esquerda) e regulatórias (à direita) sobre o mercado de baixa tensão faturado no Brasil em 2022. Fonte: relatório “Perdas de Energia Elétrica na Distribuição”, da ANEEL.

A agência reguladora declara que não realiza intervenções diretas quanto às ações que devem ser desenvolvidas pelas concessionárias para o combate às perdas, “tendo em vista que é a distribuidora que detém as informações necessárias para identificar quais estratégias alcançarão os melhores resultados, desde que embasadas pela regulamentação setorial vigente”.

Quem paga essa conta?

Além dos números preocupantes e das evidentes dificuldades em se combater as perdas não técnicas, há uma questão que muito interessa não apenas às concessionárias, mas também aos consumidores: quem arca com os custos da energia que não chega em seu devido destino? A resposta para essa pergunta provavelmente não gera muita surpresa. 

Para entender essa dinâmica, é fundamental considerar os contratos de concessão de energia. Neles, encontramos um importante mecanismo chamado “repasse tarifário dos níveis eficientes das perdas”. Em essência, isso significa que os custos associados às perdas de energia, sejam elas técnicas ou não técnicas, estão previstos e incluídos nos valores que pagamos por nossa energia elétrica. A ANEEL desempenha um papel crucial nesse cenário, estabelecendo um limite regulatório para essas perdas, na tentativa de garantir que não paguemos mais do que o necessário. A diferença entre a parcela que é acrescentada à tarifa e o volume real de perdas é assumida pelos acionistas da distribuidora.

A definição de quantas perdas são aceitáveis e quais são consideradas técnicas ou não técnicas, é realizada durante os processos de revisão tarifária periódica, que acontecem em um intervalo de 3 a 5 anos, para cada distribuidora de energia. Durante esse processo, a ANEEL estabelece percentuais regulatórios que indicam quanto de perda é razoável e como isso afeta o preço que pagamos pela energia elétrica. Esses valores são detalhados nas Resoluções Homologatórias da agência.

“O furto de energia e as fraudes impactam diretamente nas tarifas de energia, que poderiam ser reduzidas. Na área de concessão da Enel Rio, por exemplo, considerando o ano de 2022, foi registrada perda não técnica de cerca de 31% de toda a energia distribuída na baixa tensão”, conta Pâmela Botelho. A profissional revela ainda que uma estimativa da Enel Rio mostrou que, se não houvesse furto de energia, as tarifas de todos os clientes da distribuidora poderiam ser reduzidas, atualmente, em cerca de 5%.

Há ainda um outro complicador nesse cenário, conforme destaca o presidente da Abradee. “O que temos assistido nos últimos anos é um crescimento da perda real e, como a cada ano a ANEEL vai dando um ‘desafio’ para que as empresas reduzam essa perda, há um aumento da diferença entre a perda real e a regulatória, ou seja, os acionistas estão assumindo um valor maior nessa questão relacionada à perda.”

Sobre esse ponto, a ANEEL argumenta em seu relatório anual que, a regulação por incentivos, parte do princípio de que as distribuidoras devem ser incentivadas a melhorar seu desempenho na redução de perdas, ao invés de unicamente repassar os custos adicionais aos consumidores, refletindo a busca por um equilíbrio entre a necessidade de manter um setor elétrico eficiente e a proteção dos interesses dos consumidores em relação às tarifas de energia elétrica.

E quantas vidas esses “gatos” ainda têm?

Com o avanço constante da tecnologia, torna-se fundamental manter os olhos fixos no horizonte e explorar possíveis soluções inovadoras para velhos problemas. No entanto, será que essa abordagem, que vem sendo uma aliada poderosa na busca por eficiência energética, é de fato aplicável a uma questão tão intrincada quanto a das perdas não técnicas de energia?

“Existem diversas metodologias que são utilizadas pelas empresas, que dependem de qual é a região onde está havendo aquela perda e do tipo de sofisticação que possa existir no desvio. A empresa busca utilizar metodologias para identificar e, uma vez identificada, fazer a correção e a penalização do consumidor que esteja fraudando”, explica Marcos Madureira. 

“Cada vez mais, se investe em tecnologia para que se possa ter alguns medidores que aferir a energia elétrica de maneira mais segura – os chamados medidores inteligentes –, que possuem a capacidade de identificar se existe um desvio de energia elétrica na unidade consumidora. Com essa informação, é possível para a distribuidora fazer a correção desse desvio e cobrar essa diferença do consumidor”, exemplifica o gestor.

No caso da Enel Rio, conforme descreve Pâmela Botelho, vem sendo feito um investimento na utilização de data mining (mineração de dados) e machine learning (aprendizado de máquinas), que se tornaram importantes ferramentas para uma identificação mais eficaz de fraudes. “Por meio de data mining, são analisados vastos conjuntos de informações, como históricos de consumo, padrões de comportamento e indicadores de risco, em busca de sinais e anomalias que possam identificar atividades fraudulentas. A empresa investe também em projetos de blindagem da rede, cujo objetivo é aumentar a proteção da rede contra furtos, com efeito direto principalmente na reincidência de furtos”, declara.

Outra concessionária que tem utilizado a evolução tecnológica como boa aliada no combate aos furtos de energia é a Companhia Energética de Minas Gerais (Cemig). A empresa possui um programa de combate às perdas não técnicas composto por diferentes iniciativas, que incluem desde a execução de serviços em campo, até o uso de tecnologias apropriadas e envolvimento de equipes especializadas.

“As principais estratégias contemplam a utilização de softwares de inteligência para identificação de alvos suspeitos de irregularidades, realização de inspeções em unidades consumidoras, regularização de ligações clandestinas em áreas de elevada complexidade socioeconômica com uso de medição blindada e externalizada (rede ‘BT Zero’), modernização do parque de medição, por meio da substituição de medidores obsoletos por medidores novos, bem como implantação de medidores inteligentes (projeto AMI)“, relata o engenheiro de Medição e Perdas da Distribuição da Cemig, Saad do Carmo.

“Importante destacar também que a Cemig possui um Centro Integrado de Medição – CIM, por meio do qual é feito o monitoramento remoto dos grandes clientes (total de 310 mil clientes telemedidos atualmente, que representam cerca de 63% do consumo faturado da distribuidora). Por meio do CIM, é possível identificar de forma remota e em tempo real, qualquer anomalia no padrão de consumo de energia dos grandes clientes e enviar equipes de campo para identificar, registrar e remover as irregularidades detectadas”, completa.

Infelizmente, a superação das adversidades decorrentes das perdas não técnicas não se resume apenas ao aprimoramento de tecnologias ou à ampliação das áreas sujeitas a inspeções em campo. É uma questão profundamente enraizada na sociedade brasileira, um dilema complexo que tem desafiado o país ao longo de décadas. Enquanto o Brasil avança rumo a um futuro mais eficiente e sustentável, é crucial lembrar que, apenas com a colaboração de todos os setores da sociedade, poderemos enfrentar o desafio de construir um sistema energético mais justo para todos.

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