Entre as infraestruturas críticas nacionais, o setor elétrico caracteriza-se por um conservadorismo tecnológico típico dos setores intensivos em investimentos, demandando tempo para sua modernização. A atualização tecnológica é motivada principalmente pela introdução de tecnologias disruptivas, entre elas a digitalização e o uso intensivo de telecomunicações e inteligência computacional. A adoção plena destas tecnologias traz benefícios e desafios da ordem de grandeza do próprio setor, exigindo planejamento e investimentos compatíveis.
Considerada como principal vetor de modernização, a digitalização compõe, junto com a descarbonização e a descentralização, os três pilares da evolução industrial em nível mundial. Para o setor elétrico, as vantagens da digitalização já são conhecidas, e incluem a interoperabilidade de protocolos e dispositivos; a economia de cablagem, hardware e perdas; a simplificação de configuração e atualização; o autodiagnóstico, teste e configuração remotos; a melhoria da compatibilidade magnética; a padronização de hardware e software e a unificação da referência temporal, entre outras.
A despeito destas vantagens, a digitalização enfrenta desafios da mesma ordem de grandeza. Nas subestações e usinas, o processo de digitalização exige a convivência de tecnologias legadas (mecânicas e analógicas) com soluções digitais, notadamente baseadas na norma IEC 61850. Para as grandes usinas, a modernização pode durar mais de 10 anos, a exemplo do plano de modernização da usina de Itaipu. Para as subestações, além destes desafios, a constante adição de novos acessos às subestações existentes desafia a governança de redes locais de automação com múltiplos proprietários e tecnologias.
Além da complexidade tecnológica e gerencial, a digitalização das instalações aumenta sua vulnerabilidade eletromagnética e humana, em particular, para ataques cibernéticos. Devido às exigências críticas de latência na comunicação, os dispositivos de proteção digitais não possuem capacidade de processamento suficiente para introdução dos mecanismos tradicionais de proteção cibernética, tais como criptografia e monitoramento ativo. Adicionalmente, a automação embarcada na alta tensão cria um conflito de governança entre as áreas ET x OT x IT (Engenharia x Operação x Informação) sobre a gestão dos recursos digitais e segurança cibernética.
A operação integrada do Sistema Interligado Nacional (SIN) exige também a superação de desafios de regulamentação para a digitalização que garantam a segurança em nível nacional. A implantação da Rotina Operacional RO-CB.BR.01 do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) é um passo inicial importante nesta direção, ao estabelecer requisitos mínimos de segurança cibernética para a operação do SIN.
Entretanto, a segurança cibernética das instalações carece ainda de uma regulamentação específica, que norteie os esforços de modernização dos agentes. A proposta de atualização dos Procedimentos de Rede PR 2.11 do ONS representa um importante passo nesta direção.
O processo de digitalização vem acompanhado da modernização dos meios de comunicação do setor elétrico, migrando dos antigos fios piloto, PLC e micro-ondas para fibras óticas, satélites, redes roteadas e 5G. Com todos os benefícios conhecidos, esta evolução traz também a questão da latência, determinismo, vulnerabilidade, confiabilidade e segurança destas redes, agora terceirizadas.
Por último, a digitalização é uma oportunidade da introdução massiva de inteligência computacional nos processos internos ao setor. Os benefícios dependem da implantação de redes IoT e AMI ainda incipientes, com capilaridade e bandas de transmissão suficientes para processamento na nuvem, algoritmos inteligentes, Big Data etc.
Mesmo com todos estes desafios não há dúvida que a digitalização oferece elevados benefícios ao setor elétrico, exigindo, entretanto, investimentos e ações sincronizadas dos agentes setoriais, e principalmente um planejamento tecnológico integrado, com novos modelos de negócio, incentivos e estudos de viabilidade.
Autor:
Por Iony Patriota de Siqueira, diretor técnico e vice-presidente do CIGRE-Brasil.