Proposta do MME prevê ampliação do mercado livre para baixa tensão, readequação de encargos e subsídios e consolidação da Tarifa Social de Energia Elétrica
Entidades representativas do setor elétrico se preparam para participar dos debates acerca do projeto de reforma do setor elétrico, que deverá ser enviado ao Congresso Nacional ainda este ano pela Casa Civil. O texto, que está sob a responsabilidade do Ministério de Minas e Energia, prevê, dentre outras alterações, a ampliação da Tarifa Social de Energia Elétrica, que deverá beneficiar até 60 milhões de brasileiros, a abertura do mercado livre de energia para consumidores de baixa tensão, como residências e pequenos comércios. A proposta também envolve uma aguardada reestruturação na alocação dos encargos e subsídios nas tarifas de energia elétrica, em especial para as fontes renováveis, demanda antiga do segmento de distribuição de energia.
Defensor da modernização do setor elétrico, o presidente da Associação Brasileira de Distribuidores de Energia Elétrica (Abradee), Marcos Madureira, lembra que essa discussão não é nova e que, desde a Consulta Pública nº 33, aberta em 2017, já se indicava a necessidade de atualização. “O setor passou — e continua passando — por mudanças estruturais importantes, com a introdução de novas tecnologias, novos agentes e novos processos operacionais. O modelo atual não reflete mais essa nova realidade e, por isso, precisa ser revisto”, afirma.
Para a ABRADEE, a retirada dos subsídios é um dos pontos centrais para a efetividade da reforma. “O setor elétrico brasileiro está repleto dessas distorções. Há categorias de consumo e as fontes de energia renováveis que acabam recebendo benefícios que não resultam em ganhos reais para o sistema. Pelo contrário, muitas vezes aumentam o custo sistêmico, só que esse custo é repassado para os demais consumidores”, destaca Madureira.
Em 2024, a Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) constatou um orçamento de R$ 40,9 bilhões em subsídios em 2024, em que R$ 12,7 bilhões foram para fontes de energia renovável, a maior parcela dos subsídios. Os dados são do “subsidiômetro” da Agência Nacional de Energia Elétrica.
Para Alexei Vivian, diretor-presidente da Associação Brasileira das Companhias de Energia Elétrica, (ABCE), os benefícios dos subsídios para o desenvolvimento do setor são inegáveis, no entanto, devem ter prazo e objetivos determinados. “Subsídios são importantes, mas só por um determinado momento. Eles devem funcionar como uma sinalização econômica de curto prazo. Existem subsídios de natureza social, que devem ter tratamento diferente: baixa renda, irrigação, consumidor rural, iluminação pública para ampliação do atendimento, entre outros. Agora, subsidiar fontes já competitivas ou fontes mais caras que só se tornam viáveis com subsídios não faz sentido. Pode fazer sentido por um tempo, mas depois desvirtua o mercado, gera distorções e transtornos, como temos visto”, defende.
Representando um dos principais segmentos de Geração distribuída (GD), a Associação Brasileira de Energia Solar Fotovoltaica (ABSOLAR), acredita que o fim dos subsídios pode ser justificável quando a fonte se torna competitiva por si só, mas alerta para os impactos negativos de uma retirada abrupta, especialmente diante da necessidade de acelerar a transição energética.
“O fim dos subsídios é justificável quando os valores para implementação da fonte já são competitivos. Mas, nesse caso, deveríamos começar pelas fontes poluidoras e outras que já receberam incentivos por muito mais tempo que a solar, que foi a última tecnologia a ser beneficiada. Acabar com os subsídios para fontes incentivadas, enquanto se mantém o incentivo concedido à CCC (Conta de Consumo de Combustíveis), vai na contramão da transição energética e é muito prejudicial para a construção de uma matriz limpa e renovável”, defende Rodrigo Sauaia, presidente executivo da ABSOLAR.
Expansão do mercado livre de energia
A abertura do mercado livre de energia para consumidores de baixa tensão é um dos pilares centrais da proposta em análise no Governo Federal. Prevista para se concretizar já em 2026, a medida é vista por entidades do setor como um passo decisivo rumo à democratização do acesso à energia limpa e renovável.
Para Frederico Boschin, diretor do Sindicato da Indústria de Energias Renováveis do Rio Grande do Sul (SINDIENERGIA-RS) e diretor regional da Associação Brasileira de Geração Distribuída (ABGD), a mudança, apesar de desafiadora, deverá ser bastante positiva tanto para o segmento quanto para os consumidores.
“Na era da digitalização e do open energy (abertura dos dados de consumo de energia elétrica), o setor se torna mais dinâmico, aberto, democrático, eficiente e resiliente. Essa evolução é ainda mais relevante em um cenário de crescente penetração de recursos energéticos distribuídos (REDs) — como a geração distribuída, em que a energia é produzida próxima ao ponto de consumo. Para gerenciar esse novo perfil de consumo e geração, é fundamental dispor de dados cada vez mais granulares, garantindo a operação equilibrada, flexível e moderna do setor elétrico nacional”, destaca.
Essa mudança, segundo o executivo, deverá colocar o país em um patamar de alinhamento com nações mais desenvolvidas, com mercados mais liberais de fornecimento e comercialização de energia elétrica. “A discussão sobre a cobertura do mercado livre de energia já está em andamento no Brasil há bastante tempo. Ela faz parte de um processo essencial de modernização do país, que nos aproxima das nações desenvolvidas, com um mercado mais liberalizado. Alinhar-se aos requisitos da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), e liberalizar o setor de energia são objetivos fundamentais para a adesão do Brasil à organização”, conclui Boschin.
Economia na conta de luz
Para Rodrigo Sauaia, presidente executivo da ABSOLAR, a abertura do mercado livre para consumidores de baixa tensão deverá resultar em alívio para o bolso dos consumidores.
“Essa mudança pode gerar uma economia significativa para os consumidores e incentivar a digitalização do setor. Apoiamos iniciativas que promovam a democratização do acesso à energia renovável e incentivem a competitividade no setor. Acreditamos que a abertura do mercado é uma grande oportunidade para os consumidores optarem por consumir energia limpa e renovável, além de poderem prever com mais precisão o valor de suas contas de luz”, explica.
Equilíbrio e sustentabilidade
O avanço da abertura do mercado livre, que automaticamente afeta o mercado cativo de energia elétrica, embora seja promissor, é visto com cautela pela Abradee, que representa 99% das distribuidoras de energia elétrica do país. Para a entidade, a reforma precisa vir “acompanhada de uma série de cuidados para garantir o equilíbrio e a sustentabilidade no modelo vigente das distribuidoras”. Um dos pontos destacados pela Abradee é sobre a necessidade de separar o que diz respeito ao fornecimento de energia em si (que pode ser contratado livremente) e o serviço de entrega dessa energia, feito por meio da infraestrutura de redes de distribuição.
Ou seja, mesmo que opte pelo mercado livre de energia, o consumidor continuará utilizando a infraestrutura da distribuidora local para receber essa energia, e esse serviço precisa ser remunerado adequadamente, defende Marcos Madureira, presidente da Abradee. “Desde que a tarifa assegure uma remuneração adequada à distribuidora pelo uso da rede, o modelo se mantém sustentável. Quando a distribuidora deixa de fornecer a parcela de energia adquirida em leilões regulados, porque esse consumidor passou a ser atendido por uma comercializadora no mercado livre, isso é neutro para a distribuidora. Ela continua recebendo pela infraestrutura da rede, independentemente de quem forneça a energia,” defende o executivo.
As preocupações da Abradee também estão no radar da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL). Para o diretor-geral da Agência, Sandoval Feitosa, migrações fora das previsões iniciais podem levar à sobrecontratação, o que pode resultar em desequilíbrio e déficits indesejados no setor como um todo. “A sobrecontratação, ou eventual exposição da distribuidora além dos valores regulados referentes à migração, ou frustração de migração, não deve afetar o equilíbrio econômico e financeiro das concessionárias de distribuição. Hoje, o custo de sobrecontratação ficaria com os demais consumidores da concessionária, o que não se mostra razoável. E a depender do montante financeiro, nem mesmo viável”, avalia o diretor-geral da ANEEL.
Além da sobrecontratação destacada pela ANEEL, outra preocupação para as distribuidoras é sobre a questão do lastro de capacidade, que refere-se ao custo de manutenção de usinas que garantem a segurança do sistema, como térmicas e nucleares, que estão dentro do mercado regulado. Ao migrar para o mercado livre, de acordo com a associação, o consumidor deixa de contribuir com esse custo, que automaticamente recairá somente para os consumidores do mercado cativo. “Como lidar com os contratos de compra de energia que foram firmados para viabilizar investimentos em projetos estruturantes do setor elétrico? Estamos falando de usinas como Belo Monte, o complexo do Madeira, grandes hidrelétricas do Sudeste, usinas nucleares como Angra 2 e 3. São empreendimentos estratégicos para garantir segurança energética, mas cujos contratos permanecem com as distribuidoras — e o custo, com os consumidores regulados. Se esses pontos não forem tratados adequadamente, haverá retração no mercado regulado e aumento da tarifa para quem permanece nele. Ou seja, as adequações precisam ser feitas”, alerta Madureira.
Outro ponto levantado pela entidade diz respeito à legislação que concede desconto de 50% nas tarifas de uso dos sistemas de distribuição e transmissão aos consumidores do mercado livre de energia que optarem por comprar energia de fontes incentivadas (como solar, eólica ou PCH). “Ou seja, além de pagar uma energia mais barata, ele paga menos para usar o sistema, e esse custo acaba ficando para os demais consumidores. Em resumo, a abertura de mercado, da forma como vem ocorrendo, está transferindo ônus para os consumidores do mercado regulado. Isso precisa ser resolvido. A migração para o mercado livre não reduz o custo total do sistema elétrico — o custo permanece o mesmo, apenas é redistribuído. Portanto, se o consumidor migra e não carrega o custo real que ele representa para o sistema, seja pelo lastro, seja pelo uso da rede, ele está deixando essa conta para os outros. A ampliação da abertura, especialmente para os consumidores de baixa tensão, precisa corrigir essas distorções”, defende Madureira.
Segmento de comercialização
As possíveis mudanças, em especial relacionadas à expansão do mercado livre e energia, são vistas com bons olhos pelas comercializadoras de energia. Para Alan Henn, CEO da Voltera, empresa que atua na comercialização de energia, essa mudança representa uma transformação histórica para as comercializadoras de energia. “Essa abertura traz uma avalanche de oportunidades para empresas de comercialização varejistas como a Voltera, o mercado endereçável vai saltar dos atuais 200 mil clientes (média e alta tensão) para mais de 70 milhões de unidades consumidoras de baixa tensão, que poderão migrar para o mercado livre”, destaca.
Felipe Sapucahy, COO da Ecom Energia, complementa que a abertura traz não apenas desafios comerciais, mas também novas responsabilidades para as comercializadoras, que passam a ser o elo direto entre o consumidor e o mercado livre. “Hoje, o custo de aquisição de um cliente é muito alto, porque envolve um trabalho de educação. Precisamos catequizar esse consumidor, explicar exatamente o movimento que ele está fazendo ao sair do ambiente regulado e migrar para o mercado livre. Isso exige clareza, paciência e comprometimento”, afirma Sapucahy.