A natureza da corrente de curto-circuito trifásica Parte 1/2

  1. Introdução

 O objetivo deste artigo é fornecer elementos para um melhor entendimento da natureza da corrente de curto-circuito trifásica. A corrente de curto-circuito trifásica é utilizada para determinar os esforços térmicos e dinâmicos que os equipamentos do sistema elétrico devem suportar na avaliação da capacidade de abertura e fechamento de disjuntores e dispositivos que secionam o curto-circuito, na operação de relés, dimensionamento e análise de saturação de transformadores de corrente, no cálculo dos efeitos do arco elétrico, na análise de oscilografias de relés digitais e outros.

Infelizmente, devido à existência de alguma complexidade matemática, a análise do curto-circuito trifásico tem sido realizada de forma superficial, impedindo um entendimento mais profundo da natureza real e do comportamento físico da corrente de falta. Dessa forma, muitos profissionais ligados à área de proteção elétrica ficam privados de um conhecimento fundamental no exercício da sua profissão.

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É sabido que todo curto-circuito trifásico apresenta uma componente alternada simétrica e uma componente contínua decrescente. A corrente de curto-circuito próxima a um gerador (nos seus terminais, por exemplo) apresenta um decaimento no seu valor, tanto da componente alternada simétrica quanto da componente contínua. Este comportamento é caracterizado por uma “fonte local” para o curto-circuito. Nesse cenário, a reatância varia ao longo do tempo, de forma que o curto passa pelos períodos subtransitório, transitório e permanente.

No entanto, quando o curto-circuito está mais afastado do gerador (existindo uma linha de transmissão relativamente longa entre o ponto de defeito e o gerador, por exemplo), não ocorre o decaimento da componente alternada simétrica, mas apenas da componente contínua. Nesse caso, o curto é denominado “quilométrico”, ou na terminologia inglesa “NACD” (No Alternating Current Decrement) e a reatância vista do ponto de curto-circuito pode ser considerada constante.

De forma geral, considera-se que o curto-circuito apresenta “fonte local” quando existe uma reatância externa ao gerador, a qual é menor ou igual a 1,5 vezes a reatância do gerador. Em outras palavras, isto significa que o curto após a reatância adicional é maior ou igual que 40% do valor do curto nos terminais do gerador. Inversamente, pode-se afirmar que o curto-circuito é “quilométrico” se existe uma reatância externa maior que 1,5 vezes a reatância do gerador, de forma que o curto após a reatância adicional é menor que 40% do valor do curto nos terminais do mesmo.

Observa-se que nos dois tipos de curto-circuito, a resistência é considerada constante, uma vez que a análise se dá à frequência fundamental. Neste trabalho será abordado apenas o curto-circuito “quilométrico” (NACD), ficando o curto com “fonte local” para outro trabalho.

 

  1. Considerações para análise

A análise de circuitos trifásicos equilibrados (tensões equilibradas e impedâncias iguais nas fases) pode ser reduzida a apenas uma fase, com a tensão fase-neutro aplicada em série com a impedância equivalente de uma fase. Isto ocorre devido às correntes serem iguais em módulo e defasadas 120º umas das outras.

Como no curto-circuito trifásico a rede é equilibrada, a análise deste tipo de curto-circuito é simplificada considerando-se uma fonte de tensão senoidal em série com uma impedância constante (curto quilométrico) formada essencialmente por uma resistência (R) e uma reatância (L), que constituem a impedância Thévenin vista do ponto de defeito. O que foi visto está resumido na Figura 1.

Podemos, portanto, ligar o ponto P (local do curto trifásico) ao ponto N (neutro do sistema) através de um fio condutor, sem nenhum impacto no circuito (Figura 2-b). Dado que o circuito é equilibrado, temos:

Agora podemos calcular a corrente de curto-circuito através de qualquer um dos três circuitos fechados que utilizem o fio neutro como retorno. Por exemplo, aplicando-se a lei de Kirchhoff para a fase A, no laço NAPN, obtém-se o circuito da Figura 2-c, do qual se pode concluir:

Sabe-se que İb está defasada de İa de 120°, e İc defasada de İb de 120°. Na equação (2-2), Van  é o valor eficaz da tensão fase-neutro (Vrms), e então, | İa | será o valor eficaz (Irms) da corrente na fase A. A equação (2-3) deixa claro que | İa | é o módulo do próprio curto-circuito trifásico, uma vez que as três correntes são iguais. Vmax é o valor de pico da onda de tensão senoidal.

Será mostrado adiante que o valor eficaz da corrente obtido na equação (2-2) corresponde ao valor eficaz da componente alternada simétrica da corrente de curto-circuito trifásica. Para um determinado sistema de potência, o curto-circuito em uma barra qualquer pode ser calculado conforme indicado anteriormente, porém, é necessário primeiramente obter o equivalente do sistema (aplicação do teorema de Thévenin).

 

  1. Equação da corrente instantânea

Tendo em vista as considerações anteriores e presumindo uma fonte de tensão senoidal, o comportamento da corrente de falta trifásica, em função do tempo, envolve a solução de uma equação diferencial, equação (3-1). Essa equação, obtida a partir do circuito da Figura 1, é não homogênea e de primeira ordem.

 

R = resistência do circuito (Ohms);

L = indutância do circuito (Henrys);

i(t) = corrente em um instante de tempo qualquer, na onda de corrente periódica (Ampere ou kA);

Em = valor da crista (pico) da onda de tensão senoidal da fonte (Volts ou kV);

ω = velocidade angular, rad/s. (ω = 2.π.f, onde f é a frequência (ciclos/s));

t = tempo, em segundos;

λ = ângulo sobre a onda de tensão senoidal para qual o curto-circuito é iniciado, dado em rad (radianos).

 

O ângulo λ é o ângulo no qual a tensão passa por zero antes de ocorrer o curto-circuito. Este estudo considera que a onda de tensão passa pelo zero das abscissas quando  e sobe na direção positiva do eixo das ordenadas, conforme visto na Figura 3-a. Na Figura 3-b observa-se a tensão crescendo no sentido negativo do eixo das ordenadas a partir de .

Este detalhe é importante, uma vez que a forma de apresentação (forma de onda) da corrente de curto-circuito depende da forma de evolução (crescimento) da onda de tensão na sua primeira passagem por zero antes da falta ocorrer. O ângulo inicial pode ser expresso em graus, λ = 0º, λ = -23º, λ = -30º, ou em radianos, como λ = –π/2, λ = –π/6, etc. Assumindo a corrente de pré falta igual a zero, a solução da equação (3-1) torna-se:

Na equação (3-2), ø é o ângulo da impedância e também o ângulo de defasamento entre tensão e a corrente. Verifica-se que a corrente de curto-circuito trifásica é composta por duas componentes, sendo uma componente alternada simétrica permanente (componente AC), e uma componente exponencial decrescente. Quando o tempo t tende ao infinito (t ≈ ∞), a componente exponencial decrescente se anula e a corrente de curto-circuito se reduz ao seu valor simétrico permanente. A componente exponencial decrescente é denominada componente transitória, enquanto a componente AC, componente permanente. Observa-se que a componente transitória é unidirecional e, por isso, é denominada também componente contínua (DC), apesar de decrescente. As Figuras 4-a e 4-b mostram esse comportamento.

 

A Figura 4-a mostra as componentes da corrente de curto separadamente, componente AC (Iac) e componente DC (Idc) e também a corrente total (Icc). Nota-se que Icc = Idc + Iac. A Figura 4-b é mais usual e indica apenas a corrente total (Icc) e a componente contínua (Idc), bem como as envoltórias exponenciais de amplitude.

Deve ser notado também que o termo Em/Z da equação (3-2) equivale ao valor Vmáx/Z  da equação (2-2), isto é, Em/Z  é o valor de pico da corrente de curto-circuito, o qual dividido por  fornece o valor eficaz da componente alternada simétrica permanente. A soma das duas componentes resulta na corrente de curto-circuito total (ou final). Verifica-se que esta é uma corrente alternada periódica, porém, assimétrica até o desaparecimento da componente contínua.

Cabe observar que, fixados λ e , a componente exponencial decai de acordo com a constante de tempo τ = L/R , no caso dada em segundos.  De fato, para τ = L/R segue que:

Logo, para t = L/R , a componente contínua cai a 36,8% do seu valor máximo inicial, valor este que ocorre no instante t = 0, em que , isto é, 100% do valor da componente contínua.

O ângulo de fase  (ângulo da impedância) é:  = arctg (X/R) = arctg (ω.L/R) =  arctg (ω.τ)                               (3-5)

 

Sendo Im o valor máximo da onda de uma corrente senoidal simétrica cujo valor eficaz é Ims , temos:

Então, quando se toma o valor  Ims como referência (1 p.u) segue:

Considerando que: L = (X/ω),                                                                                                                    (3-10)

Dividindo-se dois lados da equação (3-2) por  e utilizando as relações (3-7), (3-9) e (3-11), resulta uma equação geral completa para calcular i(t) em função de X/R , ω, t, λ e , porém, em p.u do valor Ims.

Apenas utilizando as relações (3-7) e (3-11), sem considerar a corrente em p.u a equação (3-2) se torna:

Observa-se que o tempo t em todas equações mostradas até aqui está em segundos. Observe ainda que a constante de tempo em segundos pode ser escrita também da seguinte forma:

Utilizando a relação (3-3), as equações (3-2), (3-13) e (3-14) podem ser reescritas da seguinte forma:

4 – Variantes na apresentação da equação da corrente de curto-circuito

 Em áreas da engenharia elétrica relacionadas ao fenômeno do curto-circuito, dimensionamento de disjuntores, estudos de transitórios, estudos de proteção, dentre outros, é usual o emprego da equação (3-2). Essa equação aparece na forma de variantes, que, se não forem identificadas e bem entendidas, podem ocasionar transtornos e erros de cálculo. As principais variantes são obtidas realizando as seguintes alterações:

a) Considerando o tempo em ciclos em vez de segundos;

c) Modificando o sinal do termo da componente de corrente contínua de menos (-) para mais (+);

 

d) Escrevendo as equações em função da corrente eficaz simétrica( Ims);

 

e) Escrevendo a equação em termo da função cosseno, em vez de utilizar a função seno.

A seguir são mostradas algumas destas equações. O leitor deve familiarizar-se com as variantes, sendo que existem inúmeras possibilidades de combinações entre elas. No entanto, com o conhecimento aqui exposto, facilmente se identifica a forma na qual a corrente de curto-circuito está concebida e pode-se, com alguma manipulação matemática, transitar entre as formulações.

Equações com o tempo em ciclos em vez de segundos

Em todas equações da corrente de curto-circuito vistas anteriormente, o tempo está em segundos. Para determinadas análises, como abertura de disjuntores e operação de relés instantâneos, por exemplo, é comum utilizar o tempo em ciclos.

Lembrando que em um segundo ocorrem f ciclos (em que f é a frequência em ciclos/segundos), a relação entre o tempo em segundos, e o tempo t’ em ciclos será:

Podemos então substituir nas equações t por /f  e estas ficarão expressas com o tempo em ciclos. Na maioria das equações onde aparece o termo ω.t, com t em segundos, passando t para ciclos tem-se:

Portanto, com o tempo em ciclos, o termo f (frequência) desaparece das equações, onde o termo ω.t está presente. Com estes conceitos podemos reescrever todas as equações anteriores (3-3), (3-13), (3-14), (3-16), (3-17) e (3-18).

 

Apenas para ilustração reescreveremos as equações (3-13) e (3-14), em que o termo w aparece tanto na componente alternada como na contínua:

A equação (3-13), em que  i(t)`está em p.u do valor Ims, torna-se:

 

Substituição do ângulopor arctg (X/R)

 Essa substituição é imediatamente reconhecida e não necessita maiores considerações. A equação (3-18), por exemplo, torna-se:

Modificando o sinal do termo da componente de corrente contínua

Sabe-se que para um ângulo qualquer β, é verdade que: sen(-β) = -sen(β). Aplicando esta igualdade para o termo da corrente contínua, segue: . A equação (3-18) anterior, por exemplo, torna-se:

Escrevendo as equações em função da corrente simétrica eficaz (Irms)

Escrevendo as equações em p.u da corrente de pico Im

 As equações que não estiverem expressas em p.u podem ser facilmente formuladas em p.u em função do valor máximo (valor de pico) da componente simétrica.

a equação (4-5), por exemplo, fica:

Escrevendo as equações com a função cosseno no lugar da função seno

 

Considerando os ângulos em radianos, sabemos que para um ângulo β qualquer: sen(β + π/2) = cosβ. Portanto, se somarmos π/2 a λ, (o que equivale a deslocar o eixo das ordenadas de  π/2 para direita), todas as equações anteriores poderão ser escritas em termos de cosseno no lugar de seno. Isto equivale também a aplicarmos no circuito da Figura 3 uma fonte: Em . cos(ω.t + λ) em vez de Em . sen(ω.t + λ). A equação (3-2) ficaria, por exemplo:

Outras formas de apresentação da corrente de curto-circuito

Verifica-se, portanto, que a corrente de curto-circuito trifásica possui uma componente contínua e uma componente alternada e que a impedância envolvida na falta pode ser aproximada por uma impedância RL. A expressão matemática que define essa corrente surge naturalmente como solução da equação diferencial relativa ao circuito elétrico, na condição de curto-circuito. A solução da equação apresenta uma componente senoidal, relativa à contribuição da fonte, e uma componente exponencial decrescente. A componente senoidal depende, essencialmente, do valor da impedância do circuito, enquanto a componente exponencial, ou componente DC, irá depender do instante em que ocorre o curto-circuito, do valor de sen(λ –), e do valor da razão X/R do circuito. O termo sen(λ –) irá definir o valor inicial da componente DC ao passo que o valor de X/R irá determinar quão “rápido” a componente DC irá decrescer.

 

Continua…


Referências bibliográficas

  • IEEE TRANSACTIONS ON INDUSTRY APPLICATIONS, VOL. 1A021, NO.2, MARCH/APRIL 1985 – Relationship of X/R, Ip, and Irms’ to Asymmetry in Resistance Circuits.
  • IEEE TRANSACTIONS ON INDUSTRY APPLICATIONS, VOL. 1A-21. NO 4, JULY/AUGUST 1985 – Understanding Asymmetry. Craig N. Hartman. Hermann W. Reichenstein; Juan C. Gomez.
  • EDMINISTER, Joseph A. Circuitos Elétricos, 2ª ed. São Paulo: editora McGRAW-HILL LTDA.
  • IEC 62271-100: Alternating-current circuit-breakers.
  • 09-1999 – IEEE Standard Test Procedure for AC High-Voltage Circuit Breakers Rated on a Symmetrical Current Basis

Por Paulo Fernandes Costa e Filipe Barcelos Resende*

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Uma resposta

  1. Parabéns aos elaboradores.
    Em especial ao meu amigo e mestre Filipe Barcelos!

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